A contemplação e a misericórdia

A espiritualidade franciscana e a Santa Casa da Misericórdia de Azeitão (1621-2021)

 

Este texto, nos 400 anos desta Santa Casa, é escrito por um irmão desta instituição e também frade franciscano, guardião do Convento de Santo António de Varatojo, em Torres Vedras, e grande admirador dos religiosos do Convento de Nossa Senhora da Arrábida. A primeira parte é sobre São Francisco de Assis e a relação entre contemplação e misericórdia; a segunda, sobre a relação entre os frades arrábidos e os irmãos desta Santa Casa; a terceira, sobre o nosso presente e o nosso futuro.

 

                1. São Francisco de Assis, no início do seu itinerário vocacional, faz experiências que o marcam para toda a vida. Isso acontece no ano de 1205: o encontro com os irmãos doentes de lepra e o encontro espiritual com Cristo na pequena igreja de São Damião. Em relação ao primeiro, diz São Francisco, nas primeiras linhas do seu Testamento espiritual: «Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que começasse a fazer penitência; porque, quando eu estava em pecados, parecia-me muito amargo dar com os olhos nos leprosos; mas o mesmo Senhor, um dia, me conduziu ao meio deles e com eles usei de misericórdia. E ao afastar-me deles, o que antes me parecera amargo, converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo: e em seguida, passado um pouco de tempo, saí do mundo». De sublinhar: o dom («o Senhor me conduziu»); o exercício da misericórdia (literalmente: «fiz (feci) misericórdia»); a mudança radical («saí do mundo»): saí do meu mundo egoísta, para entrar no mundo dos outros, para os ajudar. Em relação ao encontro com Cristo em São Damião, é de sublinhar o acolhimento da missão: vai, Francisco, e restaura a minha casa! Francisco reza, para que isso aconteça: «Ó glorioso Deus altíssimo, ilumina as trevas do meu coração, concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeito. Mostra-me, Senhor, o (recto) sentido e conhecimento, a fim de que possa cumprir o sagrado encargo que na verdade acabas de dar-me. Amen». Estamos na génese de uma história que tem mais de 800 anos. Desta história também faz parte a Santa Casa da Misericórdia de Azeitão. Ao longo de muito tempo, São Francisco de Assis organizou os seus dias entre a vida eremítica e o cuidado dos doentes nas leprosarias. Os seus primeiros seguidores também viviam assim. E os primeiros que chegaram a Portugal por 1217 fizeram aqui o que tinham aprendido em Assis.
                1. A paixão das origens é a marca da vida franciscana iniciada na Arrábida por Frei Martinho de Santa Maria e seus companheiros nos meados no século XVI. Estamos numa das épocas mais luminosas da Ordem Franciscana. É o movimento da reforma: o voltar à forma original do fundador da Ordem. Concretiza-se em três coisas: voltar ao essencial da vida de despojamento, da vida contemplativa, e da vida de amor em benefício de todos e de tudo. A Crónica da Arrábida é uma fonte importante para o conhecimento da vida conventual destes religiosos e da forma como estavam presentes em muitas instituições de bem-fazer. No que diz respeito à Santa Casa da Misericórdia de Azeitão, há que ter em conta também a relação com a Casa de Aveiro. Os Duques de Aveiro apoiam o Convento desde a sua função. Os mesmos também apoiam a Santa Casa. Somos informados pela referida fonte que o Padre Pedro de Mesquita Carneiro «mandou fazer uma Enfermaria na Misericórdia de Azeitão, pois que até àquele tempo não havia mais que a Igreja, a que deu princípio seu Fundador D. Afonso de Lencastre» (Crónica I, §132). O Padre Pedro de Mesquita Carneiro era Capelão da Casa de Aveiro e era acompanhado espiritualmente pelo arrábido Frei Francisco dos Reis (os dois estão sepultados na igreja da Arrábida, assim como vários membros da Casa de Aveiro). D. Afonso de Lencastre, filho do terceiro Duque de Aveiro, é o primeiro provedor da Santa Casa da Misericórdia de Azeitão. A paixão das origens dos arrábidos influenciou a paixão evangélica dos irmãos da Misericórdia na sua fundação que agora celebramos. Nem sempre terá sido rigorosamente assim em todo este tempo da sua história, mas o desafio das origens é o de hoje e o do futuro.
                1. Há uma relação entre contemplação e misericórdia. A espiritualidade franciscana tem garantido, ao longo da história, essa relação. Sem misericórdia, a contemplação é pietismo com pouca profundidade espiritual. Sem contemplação, a misericórdia é ativismo de qualidade duvidosa. Tal como os nossos antecessores, somos seduzidos pela radicalidade evangélica, focados no essencial, contemplativos e misericordiosos, cuidando de todos os irmãos. Voltamos a São Francisco de Assis, no seu Testamento espiritual: «E, depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, ninguém me ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do santo Evangelho». Os irmãos são colocados pelo Senhor ao meu cuidado: isto é Evangelho da Misericórdia em estado puro! O Papa Francisco tem colocado no centro da vida eclesial tudo isto, pelos seus gestos e pelas suas palavras. O cuidado de todos os irmãos é a marca principal do seu pontificado. As suas encíclicas Laudato si’ e Fratelli tutti, inspiradas em São Francisco de Assis, ajudam-nos a entender isso. O mesmo se pode dizer das suas reflexões semanais tidas entre os dias 6 de maio de 2020 e 16 de junho de 2021, sobre a vida espiritual de oração. Esta sequência foi interrompida entre os dias 5 de agosto e 30 de setembro, com um conjunto de reflexões sobre “Curar o Mundo”, acerca dos grandes princípios de ação social. Muito significativamente assim aconteceu, e a reflexão 7 de “Curar o Mundo” é sobre: “Cuidado da Casa Comum e atitude contemplativa” (16 de setembro de 2020). A contemplação e a misericórdia são o nosso futuro!
Frei Hermínio Araújo
Frei Hermínio Araújo