Joaquim Pedro d´Assumpção Rasteiro (Filho)
1903-1906

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Joaquim Pedro d`Assunção Rasteiro (Filho)
Provedor entre 1903 e 1906

 

Joaquim Pedro d`Assunção Rasteiro (filho) nasceu em Vila Nogueira de Azeitão, em 16 de Dezembro de 1866 e faleceu em 4 de Maio de 1931. Filho de Joaquim Pedro d`Assunção Rasteiro e de Mariana Margarida Pereira da Silva Rasteiro, foi baptizado na igreja de S. Lourenço de Azeitão em 11 de Janeiro de 1867 tendo como madrinha a condessa de Murça, Dona Elena da Piedade e Lencastre, representada como procurador o Dr. Manuel Bento de Sousa.

Joaquim Rasteiro (filho) foi figura de relevo entre os agrónomos portugueses e no ensino no Instituto Superior de Agronomia, onde exerceu, entre 1929 e 1931, o cargo de director.

Em 4 de Maio de 1933, realizou-se no Instituto Superior de Agronomia, uma sessão de homenagem ao Engenheiro e Professor Joaquim Pedro d`Assunção Rasteiro, onde foi lido pelo Professor Mário d`Azevedo Gomes um texto intitulado: “Estudo Biográfico do Eng. Joaquim Pedro d`Assunção Rasteiro”. Desse texto retirámos, com a devida vénia, as seguintes partes:

“… Foi em 1892, com 26 anos incompletos, que se diplomou este agrónomo, defendendo na frente dos mestres de que são vivos apenas dois, Pereira Coutinho e Rebelo da Silva, — e aos quais por sinal dedicou e a seus Pais este primeiro trabalho, com a tese intitulada “Esboço de uma memória sobre a economia agrícola da 4ª região agronómica”. Em relativo contraste com o seu passado académico, pouco brilhante, esta saída do Instituto assinala-a rasteiro com elevada classificação, a marcar-lhe um nível inicial que nunca mais deixariam que baixasse, com o rodar do tempo, o seu esforço e o seu brio, antes o elevando gradual e seguramente em consideração e em prestígio perante o país agrícola, perante a escola e perante a classe.

Surpreendem naquele trabalho escolar, ainda mesmo quando descontemos nele a idade do autor, passados os 25, a profundeza do estudo, a rectidão dos juízos e o equilíbrio dos conceitos, ao serem encarados aspectos fundamentais da nossa economia rural; traduz hábitos de reflexão metódica, qualidades natas de ponderação e bom senso, compensadoras da minguada experiencia e, caracteristica que não faltará jamais nas obras que este mesmo nome firme, da primeira à última página respira íntima admiração pela labuta dos campos, carinhosamente descrita, simpatia íntima pela gente rude que a essa labuta se entrega de sol a sol, e um desejo veemente de concorrer para que seja maís feliz o agrícola português, e mais prospera e digna a nação que nesse agrícola tem o seu esteio mais forte.

Maís surpreende ainda neste primeiro livro, para o momento em que foi composto, a perfeita noção das necessidades da agronomia portuguesa no campo da investigação: «é somente sobre bases solidas e seguras — lê-se aqui — que se fundam os grandes edifícios, tanto arquitetónicos como industriais»; aquele que havia de tentar vinte anos maís tarde, com a generosa criação de estações agrárias, assentar em normas, de uma eficiência hoje indiscutível, o esforço dos agrónomos que servem o Estado, afirmava assim, desde os primeiros passos profissionais, uma visão segura e o apego a directrízes técnicas às quais soube manter-se fiel em toda a sua vida.

“… Obtida a carta, inicia o novo diplomado sem perda de tempo a sua carreira, entrando no mesmo ano para o serviço do Estado, com um curto estagio laboratorial em Lisboa. Vai agora desenrolar-se para ele, durante alguns anos, uma primeira fase da vida profissional que poderei designar pela fase do agrónomo de campo e do agricultor; A esta seguir-se-ão mais três; a fase, curta e atribulada, do organizador de serviços; a fase do professor; por último a fase do mestre que culmina pela sua elevação a director do Instituto.

Os anos de 1906, 1913, 1926, por fim 1931, marcam a terminação no tempo de cada uma destas quatro modalidades.

O primeiro contacto agronómico com a vida do campo quere o destino que venha a tê-lo Joaquim Rasteiro em região muito distante e diversa da sua própria região de entre Tejo e Sado que muito bem conhecia; pois é como agrónomo do distrito de Bragança que faz a sua estreia, nos últimos dias de dezembro do próprio ano da formatura. Era assim, e assim continuou sendo largo tempo, o critério distributivo da assistência técnica: às cegas e a lanço, na pouco produtiva sementeira dos agrónomos distritais. Fáceis de prever, em consequência, os embaraços, as incertezas e indecisões que assaltavam o novato, recém chegado a um meio de tendência hostil que, na maioria dos casos, desconhecia. Desta situação nos dá Rasteiro, com aquela franqueza de sempre, uma curiosa nota quando no elogio póstumo de Menezes Pimentel, de quem foi grande amigo, descreve a sua chegada a Mirandela, entre acanhado e ansioso de bem servir, e recebe no acolhimento rasgado daquele colega transmontano, que dirigia a Estação Sericícola, os alentos que, maís feliz que outros, sem demora lhe permitiam firmar o passo na jornada difícil. Esta espécie de frio interior, misto de receio e de tristeza, que perante o desconhecido nos invade ao deixarmos para traz, casa, parentes e amigos, sob o peso de severas responsabilidades, quem há que o não tenha experimentado em circunstâncias semelhantes, no momento da iniciação profissional? Para a fina sensibilidade deste homem foi o passo tão fortemente impressionante que não mais o esqueceu e, no intuito de fortalecer o ânimo dos discípulos entregues à sua guarda, a ele tornará a referir-se, anos volvidos, numa das lições de abertura da sua cadeira, solícito em precaver os novos contra os percalços da própria novidade.

Problemas que trazia em estudo na sua querida terra de Azeitão transportou-os, num apreciável espirito de sequencia, Joaquim Rasteiro para o quadro das suas novas ocupações; a colaboração que ao tempo dava às revistas “Portugal Agrícola„ e “Vinha Portuguesa, regista trabalhos seus sobre o emprego das leveduras selecionadas na vinificação, cabendo-lhe — di-lo o director da segunda daquelas revistas — a prioridade de tais estudos entre nós; é assunto que durante anos o interessa, que depois continua tratando na Escola de Torres e de que por fim dá conta em conferencia, a primeira que fez, em 1900, na então Real Associação Central da Agricultura Portuguesa.

Em 1894 o agrónomo do distrito de Bragança passava à estação químico-agrícola de Lisboa; curta havia sido a estadia na terra transmontana; e em 1896 é-lhe confiada a Direcção da Escola de Viticultura Ferreira Lapa e aqui se demorou dois anos mais. Infere-se que nesta primeira quadra da vida a predilecção do técnico iria para a viticultura e o fabrico do vinho, não sendo difícil encontrar a razão do facto na influência, que foi sempre forte nele, do torrão em que nascera, região privilegiada que nos afamados moscatéis conta um dos seus títulos de justificado orgulho.

Entretanto o «curriculum vitae» oficial sofre, chegado o ano de 99, um colapso um tanto inesperado; com demora até 1906 acolhe-se agora Rasteiro à licença ilimitada e, penso eu, são os negócios da sua casa agrícola que antes o preocupam e o veem colocar na posição maís nítida de agricultor. Um agricultor, porém, que não esquece o seu diploma nem a missão social que lhe pertence; na região como fora dela, aqui na capital, participando da vida associativa, da Associação Central à Sociedade das Ciências Agronómicas, a sua atividade não esmorece e vai-lhe granjeando foros de propagandista de mérito, como poucos consciencioso e hábil em fazer-se escutar, convencendo. Na «Revista Agronómica», órgão daquela sociedade, a sua colaboração é frequente neste tempo. E sem descurar os assuntos enológicos vemo-lo que se inclina agora, para o estudo dos lacticínios; e ainda aqui a região, que é multimoda como raras nas formas da produção, pode ter influído.

Por isso, quando em 1905 reúne em Lisboa o Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústrias do Azeite, grande parada de forças da agronomia nacional, é-lhe confiada a missão de relatar a tese sobre o “Fabrico e Comércio do Queijo em Portugal», para cuja realização procura rodear-se dos mais seguros elementos de informação, colhidos directamente na origem. A necessidade de assentarmos em tipos definidos de queijos, com a introdução no mercado de alguns de pasta dura ou firme, o papel decisivo da associação no melhoramento do fabrico, e sempre a questão basilar da indispensabilidade de estudos técnicos empreendidos, com seriedade e competência, tais são as deduções essenciais deste trabalho, às quais — quanto custa dizê-lo — um quarto de século decorrido não lográmos ainda dar resposta que nos baste.

“… Certo é que em 1906 Rasteiro requeria como candidato ao concurso de chefe de serviço do nosso Instituto, aqui entrando em 1907, com o seu passo seguro e cadenciado, e o aprumo invulgar da sua figura física, inteiramente em acordo com esse outro aprumo da sua bela figura moral.

Atingira então os quarenta anos de idade; daqui à sua morte medeiam 24, e destes pode dizer-se que não menos de 20 vão ser consagrados à Escola e ao ensino.

Logo em 1908 participa de uma missão de estudo à Ilha da Madeira, destinada a propor soluções para a impertinente questão do regime sacarino; dedica-se com vontade ao exame do problema, ganha sobre ele opinião bem assente e daí em diante quando este assunto volta, intermitentemente e segundo os ventos sopram, a preocupar os Governos, raro o seu parecer deixa de ser ouvido; tal a confiança que mereceram neste caso, e aliás como em tantos outros, as suas averiguações, a sua isenção e o seu bom senso.

“… Os anos seguintes, de 1909 e 1910, revelam nos escritos de Rasteiro preocupações as mais elevadas; agita-se por então a ideia de Congressos Nacionais; promove-os a Liga Naval a que preside, valorizando-a, o nobre espírito de Jacinto Cândido da Silva. A Real Associação Central da Agricultura encarrega-se de relatar, para o Congresso de 1909, a tese «O estado da Agricultura Portuguesa — Males e Remédios; e é o agrónomo Joaquim Rasteiro o seu relator. O estudioso e o patriota vão agora dar-se as mãos no desejo de imprimir na vida pública nacional, a partir da agricultura e, ajudando o Estado, aquelas características de progresso e de bem estar generalizado que já a sua tese escolar entrevia possíveis, tão possíveis como justas e necessárias.

“… Com a implantação da Republica era aposentado o Director Geral da Agricultura, agrónomo Alfredo Carlos Lecoq, substituindo-o Rasteiro nestas elevadas funções, ainda em 1910. Acertada escolha para o regime que precisava distinguir-se à nascença pela rigorosa selecção dos seus mais altos funcionários, aos quais se exigia revolucionassem os processos da velha administração burocrática. Acertada escolha, valendo só por si como indicação das qualidades do Ministro que a fizera, tão certo é que um dos primeiros requisitos do estadista consistiu sempre em saber ele rodear-se, vara os postos de comando, de gente prestigiosa e competente! No caso sujeito este prestígio e esta competência vinham de afirmar-se: a sucessão dos termos, diga-se, era lógica; o novo Director Geral encetara, à margem da vida escolar, estudos sérios sobre problemas gerais da economia agrícola, a si mesmo se cultivara e completara, e a prova de que abundava em recursos, em planos e ideias definidas, estava afinal precisamente na aceitação que fizera do alto cargo. Porque a este homem o não iludia a consciência, juiz severíssimo; quando houvesse de aceder a um convite para servir, honrá-lo-ia sempre. E assim sucedeu, de facto, mais uma vez aqui.

A administração de Joaquim Rasteiro na Dírecção Geral, donde então se abarcava tudo quanto respeitasse a serviços técnicos de natureza agrícola, caracterizou-se pelo seu dinamismo, pelos propósitos de reorganização e pelo prestígio de que foi cercando os vários agentes em trabalho, empenhado em pôr sempre cada um deles no lugar mais próprio. O momento era azado e soube aproveitá-lo bem; o Ministro do Fomento, Dr. Brito Camacho, deixou o seu nome ligado a medidas de largo alcance, das quais destacarei a do Crédito Agrícola Mutuo; o Dírector Geral, esse, ajudou desde logo a consolidar a posição do ensino agronómico que foi remodelado, passando a Tapada da Ajuda à posse do Instituto, um acontecimento de valor evidente; empreendeu revigorar o ensino médio e, dentro dele, veio dar à Escola de Coimbra a possibilidade orgânica de constituir-se num forte centro de educação, destinado a ganhar para a causa da lavoura, que é a própria causa da grey, os filhos dos agricultores da média e da grande propriedade. Havia nesta reforma de 1911 um espírito novo, declarava-se guerra ao funcionalismo do Estado, e no campo da pedagogia, procurava adaptar-se a este caso concreto, podendo vir a pesar com o tempo na vida nacional, aquilo que de melhor nos ensinavam a prática e o estudo alheios.

As reformas que vão saindo para o “Diário do Governo„, numa azáfama cheia de boa vontade, começam neste departamento pelo ensino: honrava assim Rasteiro os seus compromissos de relator ao Congresso Nacional, dando uma importância máxima à função docente. Segue-se a obra de vulto da reorganização dos serviços técnicos e ainda aqui, pela escala dos valores, a ideia dominante é marchar de encontro ao essencial, procurando que se instale em bases solidas a tarefa da investigação. Importantes diplomas orgânicos e regulamentares são então elaborados, entre 1911 e 1912, sobre o funcionamento das estações agrárias das quais se fazia depender, praticamente, toda a actividade do Ministério, quando colocado em face dos problemas prendendo com a agricultura. Estudar o país agrícola, estudá-lo exaustivamente, conhecê-lo na sua intimidade de modo a fazer-se em Portugal agronomia portuguesa, eis as directrizes e o pensamento máximo; e ao mesmo tempo fazer com que este estudo viva paredes meias com a escola, a penetre, a estimule, a vivifique, de maneira a que pelas suas portas breve possam sair, os divulgadores da nova ciência e os propagandistas da boa doutrina.

“… A derrocada da organização coincide com o pedido de demissão do organizador, e nesse mesmo ano de 1913 Joaquim Rasteiro abandona a Direcção Geral e regressa ao Instituto, onde, entretanto houvera o ensejo da sua promoção de chefe de serviço a professor desde 1912, passando rapidamente da cadeira de Geografia Económica à de Economia Rural e desta à de Arboricultura, na qual logo se fixou e veio depois a fazer-se mestre.

Reentrava na Escola tranquilo de consciência como sempre, mas um tanto cansado e desiludido; se ouso dizê-lo, não era a combatividade a caracteristica do seu temperamento; tomar a ofensiva, como por vezes é preciso, repugnar-lhe-ia; e, pois, que mostrara o caminho a trilhar sem que houvessem querido seguir por ele, recolher-se-ia ao silencio, apenas desabafando de quando em longe a sua mágoa, pelo tempo que perdera e pelo bem que não pudera fazer. Deste desabafo é testemunha certa passagem da conferencia que, a pedido dos estudantes de agronomia, realizou em 1914, numa das salas tão suas conhecidas da Associação Central. Versava o tema do ensino agrícola feminino, de cujo desenvolvimento à semelhança do que tem sucedido fora, um pouco por toda a parte, fiava a aquisição de reais progressos em a nossa vida rural, afirmando: «é a mulher convenientemente educada que há de fazer o ressurgimento da vida familiar, que é a base de toda a vida social e de toda a actividade económica verdadeiramente productora», e como nas bases da sua organização de 1911 havia referencia a este ensino e também à modalidade designada popular, para os adultos, desta sorte se lamentou Rasteiro, usando de um estilo pitoresco que era muito seu: “o ensino popular este, é claro, morreu no mesmo dia e hora do ensino agrícola feminino. E o que é singular: foram ambos de palmito e capela, não lhes faltando os responsos cantados por numerosa confraria!» Assim se referia, com bom humor onde outros poriam a invectiva feroz, à votação adversa que o Parlamento fizera da reforma.

“… Temos portanto agora, voltando à resenha biográfica, Joaquim Rasteiro, na terceira fase da sua vida, aquela que designei a fase professoral.

Do ensino da sua cadeira vai ocupar-se sem mais demora e sem desfalecimentos; o que lá vai, lá vai e para o Instituto voltará suas atenções e seus desvelos, absorvido pela tarefa quotidiana como sempre.

É também nesta época, 1916, que traça a sua pena algumas das melhores páginas que lhe ficámos devendo, ao escrever o elogio histórico de Menezes Pimentel, lido na Associação dos agrónomos portugueses em a noite de dez de Abril, páginas que o seu coração ditou e nas quais há, como mostrarei ainda, material abundante podendo servir para o recorte do próprio perfil. Entretanto, para a Escola, produzia-se o grande acontecimento da inauguração da sua nova sede, em 1917: abre esta casa as suas portas e abre-as confiada em que vejam melhor agora o nosso Instituto, melhor o compreendam e, por isso mesmo, o respeitem e ajudem a viver a vida honrada e útil à qual, pelo compromisso de todos nós, professores, ele se propõe.

“… Neste ano de 1926 deve Joaquim Rasteiro ter atingido talvez um máximo de productividade, tantos foram os documentos que deixou do seu labor técnico e cientifico com essa data. De facto, além da participação no Congresso de Roma que acabo de referir, realiza então a já citada conferencia de expansão universitária no Instituto Botânico de Coimbra em que versa o problema do fomento da nossa fruticultura, e prepara para o 2.° Congresso Pomológico de Alcobaça as duas teses sobre “a terminologia portuguesa das diversas partes e órgãos da arvore de fruto e das diversas operações culturais que lhe respeitam», teses cuja defesa oportunamente faz com impressionante autoridade. A todas as sessões do Congresso foi presente, intervindo nas discussões com bonomia não isenta de firmeza e, creio bem, que para os raros especialistas ali reunidos saiu dali eleito por unanimidade como o primeiro de entre todos.

“… Com Joaquim Rasteiro, porém a surpresa veio traiçoeira carregar inexoravelmente sobre os nossos ombros, vergados pelo desgosto de perdê-lo. E nenhum de nós, pensando na Escola, podia agora limitar-se a rememorar tão somente aquilo que por ela havia feito, se não também nos assediava a mágoa pelos futuros benefícios, mais que certos, assim perdidos com esta morte prematura, que, estando o nosso colega em boa actividade, de súbito o prostrara.

Redobrada razão para sentir, como sentimos todos, a sua falta, e isto mesmo sem dar aqui guarida, como convém, à amizade ferida e aos seus queixumes; que trazer uma e outros ao contacto do publico assume, a meus olhos, como que o aspecto de uma profanação!

Logo se soube que na terra natal, nesse pequeno cemitério da aldeia é que iria dormir Rasteiro, bem se percebe porquê, o seu derradeiro sono. E um outro pequeno mundo de recordações agora nos envolvia ao enquadrar-se no meio rústico, senhoril por traços, e belo sempre, da sua querida vila de Azeitão, a figura máscula, simples, transbordando bonomia e quietude interior, daquele que fora ali uma perfeita encarnação das virtudes campestres, do amor forte da natureza, como que a sublimação do que existe de melhor na alma singela do nosso camponês antigo!

Toda a vida em acção ou no pensamento a li presa, sofrendo o influxo do torrão privilegiado, os ócios habituais, os raros ensejos de furtar-se ao trato fatigante da cidade, ali passados sofregamente!

Quão pronto se disporia ele a subscrever, gabando esta terra, o que da vizinha Arrábida dissera o fundador do pequeno convento «que por suas incomparáveis belezas, se não estava no céu, estava nos seus arrabaldes»!

A região inteira era-lhe objecto de um culto, filhando raízes no passado, culto que havia de entretecer-se com esse outro que, respeitoso, prestava à memória paterna. Joaquim Rasteiro Pai, ali nascido e ali tendo vivido sempre, deixara obra de historiador regional competente, de erudito, e assinalara a sua existência pela feição artística da cultura. Tudo isto fora integralmente herdado e uma perfeita identidade de gostos havia de continuar, de pai a filho, uma honrosa tradição.

“… Da riqueza desta personalidade está dito o bastante; e afinal é ainda Joaquim Rasteiro o próprio a defini-la, sem dar por isso, quando nós fala dos amigos que perdeu, de Menezes Pimentel, de Oliveira Feijão, e neles exalta, como fundamentais, as virtudes e as qualidades com que era formada a sua excelente estrutura intelectual e moral.

E significativo que dessas qualidades use Rasteiro destacar a sinceridade, impressa em todos os actos da vida; e bem pode afirmar-se ter sido este traço que vinca maís profundamente na sua existência.

Talvez que por isso mesmo, nessa tarde agreste em que nós, os da cidade, nos fomos juntar aos da aldeia, para o cumprimento de um dever social tantas vezes vazio de significado, foi essa sinceridade perfeita que pairou, límpida, sobre nós e fez dar expressão condigna ao acto fúnebre que, por uma vez, a todos ali congregou!

“… Oiça-se a exortação do Prof. Rasteiro e cumpra-se hoje, amanhã e sempre o que essa exortação nos diz!

Também aqui dentro, gente moça que me escuta, também aqui dentro pode dizer-se que os «mortos mandam”; alguns dos nossos mortos, os eleitos da nossa inteligência e do nosso coração; e à dignidade de todos nós pertence obedecer-lhes.

Ora, Joaquim Rasteiro, o homenageado desta tarde, é um desses eleitos; reconhece-lhe o nosso consenso unanime, para além da morte, o raro direito de mandar que já em vida teve.”

Joaquim Rasteiro foi em 1910 nomeado Director Geral da Agricultura.