D. Maria de Guadalupe de Lencastre
Duquesa de Aveiro – 1653

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Maria de Guadalupe de Lencastre e Cárdenas, uma mulher à frente do seu tempo

 

Por Bernardo Costa Ramos

 

Maria nasceu quando corria o dia 11 de janeiro de 1630, dia de sol e calmaria por terras de Azeitão. D. Ana Maria Manrique, sua mãe, cansada do esforço, mas sorridente, continuava deitada. O quarto andava atarefado de mulheres, os seus passinhos ouviam-se e combinavam com os pequenos raios de luz que as janelas semicerradas deixavam entrar. O movimento circulante ajudava a misturar os cheiros daquele momento: o suor, as roupas, os perfumes e os líquidos do nascimento. Tudo isto se desfez com os sons delicados daquela criança que aspirava e respirava, pela primeira vez, o ar deste mundo, os ares de Azeitão e do palácio onde tinha acabado de nascer. Limpa e embrulhada num belo pano de linho branco Maria viu, pela primeira vez, as feições de sua mãe. Era agora do exterior que tudo se compunha e se construía. Depois de nove meses de interior o mundo estava pronto para receber a que viria a ser a 6ª Duquesa de Aveiro, Maria de Guadalupe de Lencastre e Cárdenas (que ainda não era, mas viria a ser, que ainda não sabia, mas viria a saber) e saiu do quarto. D. Jorge de Lencastre, seu pai, sorriu e beijou-lhe a testa, sua avó, a Duquesa D. Juliana de Lencastre, e o seu tio, D. Afonso de Lencastre, Marquês de Porto Seguro, benziam-se e agradeciam à Virgem o presente e futuro desta criança.

Este podia ser o início romanceado da vida desta mulher extraordinária, culta, nascida no Palácio dos Duques de Aveiro, em Vila Nogueira de Azeitão, única mulher Provedora nos 400 anos de história da Santa Casa da Misericórdia de Azeitão e que viveu até aos 85 anos, mas a sua vida foi muito mais do que tudo isto.

A sexta duquesa de Aveiro, Maria Guadalupe de Lencastre e Cárdenas, foi uma mulher que se distinguiu na Ibéria dos seculos XVII e XVIII, vivendo entre estes dois séculos e entre duas cortes. Ganhou fama nas cortes portuguesa e espanhola devido à influência cultural e política que conseguiu exercer. Teve uma educação bastante completa realçando-se o domínio de várias línguas (grego, latim, italiano, francês, castelhano, inglês…), bem como o exercício da arte da pintura, poesia, música, ficando conhecida também pelos seus conhecimentos em história sacra. Ficou também ligada à parte missionária. Das muitas missivas que trocou com vários missionários que apoiou ficamos cientes da sua curiosidade e desejo de conhecer o que iam experienciando. Financiou muitas dessas missões, principalmente de jesuítas e franciscanos à Serra Leoa, China, Japão, Goa…, chegando a ser conhecida como a “mãe das missões”. Dona de uma memória prodigiosa, possuía uma Biblioteca de mais de 4000 livros sobre variados temas e em várias línguas, ultrapassando as de muitos reis. Foi desmantelada, mas subsiste o inventário dos mesmos. Da sua consulta podemos concluir, pela quantidade de livros existentes, o seu particular interesse pela História, Humanidades e Religião.

Com apenas 13 anos (1643) foi eleita provedora da Santa Casa da Misericórdia de Azeitão, facto invulgar numa instituição só de homens, tendo sido, a primeira mulher provedora nesta instituição já com 400 anos. Só não será inteiramente invulgar se tivermos em conta de que foi a Casa de Aveiro, com D. Afonso de Lencastre, que fundou e protegeu a SCMA, tendo alguns Duques e familiares sido Provedores. Não é, certamente, explicação cabal e fica o mistério – e também a curiosidade – para percebermos como é que uma mulher, mesmo sendo da família fundadora, ter sido eleita Provedora numa época em que o domínio masculino era reinante. Em 1659, residindo já em Carnide, nos arredores de Lisboa, foi eleita juíza da Mesa da Irmandade de São Lucas dos pintores de Lisboa, por ser pintora e também perita na arte da pintura.

Esta é uma mulher que representa, claramente, os frutos do Renascimento e do Humanismo. A evolução social, económica, política e cultural que marcaram este período histórico, cultural e artístico certamente que influenciou a sua educação e a sua maneira de olhar para o Mundo. A abertura de pensamento, a vontade de saber e conhecer, os novos produtos e relatos de outras gentes, a abertura ao conhecimento, graças aos estudos dos portugueses nas universidades estrangeiras, alterou a cultura da nação portuguesa, influenciando fortemente as universidades de Coimbra, Lisboa e Évora, a administração civil e religiosa, os centros culturais da nação e até do Ultramar. A evangelização destes territórios que íamos descobrindo e fixando neles as nossas gentes tomou um papel essencial para a Duquesa.

Ida para Espanha

A 6 de julho de 1660 parte para Espanha, acompanhada de sua mãe e de seu tio D. António de Lencastre. A ida era precipitada, mas obrigatória. Ia ter com seu irmão D. Raimundo, 4º Duque de Aveiro, exilado em Espanha. Este não pensava em voltar a Portugal, pois tinha sido condenado por traição à pátria por passar-se para o lado espanhol na Guerra da Restauração, depois da regente Dª Luísa de Gusmão lhe ter confiado altas responsabilidades. É destituído de seus títulos em Portugal deixando o património da sua Casa de Aveiro sob administração real, que assim continuaria por muito tempo. Felipe IV, rei de Espanha, concedeu a D. Raimundo o título de Duque de Ciudad Real, uma forma de o contentar e integrar na nobreza espanhola. Viria a falecer em 1666, sem deixar descendência, tendo D. Pedro de Lencastre (primogénito dos 3ºs Duques) com o título de 5º Duque de Aveiro.

Segundo um dos biógrafos da Duquesa, Diogo Barbosa Machado, a sua vida em Madrid decorreu de forma venerada, ou seja, os ministros da corte “atraídas pela suavidade do seu génio e subtileza de espirito” consultavam-na nas matérias de Estado e seguiam os seus conselhos.

No dia 28 de outubro de 1665, D. Maria de Guadalupe casou com o 6º Duque de Arcos, Manuel Ponce de León e, desse casamento, nasceram três filhos: Joaquim, Gabriel e Isabel. Foi realizado um tratado desse casamento e estabelecidas uma série de cláusulas, visto que a Duquesa já possuía um grande património e independente do de seu futuro marido. Entre essas cláusulas ficou decidida a futura separação dos títulos espanhóis e portugueses para que ambos não ficassem na mesma pessoa. Assim, o primogénito herdaria os títulos espanhóis, enquanto o segundo filho faria o mesmo com os portugueses.

Com a morte do 5º Duque de Aveiro, também sem deixar qualquer descendência, a Casa de Aveiro foi julgada vaga para a Coroa, mas logo apareceram vários candidatos que disputaram a sua posse, entre eles D. Maria Guadalupe. A disputa foi julgada a seu favor em 1679, ficando assim como 6ª Duquesa de Aveiro, mas condições foram impostas para que pudesse desfrutar e efetivar o título, ou seja, teria que regressar a Portugal e prestar vassalagem ao soberano português (D. Pedro II).

O rei de Espanha e seu marido não permitiram. Este, depois da primeira sentença favorável a D. Maria, tentou dificultar em tudo que esta recuperasse aquele título, inclusive afastando-a de seus filhos. A Duquesa chegou a escrever uma carta de ajuda ao rei de Espanha pedindo para demover o marido e finalizava essa sua carta com uma ardente defesa dos seus direitos e capacidades enquanto mulher, dado que a condição em “nada distingue: porque las que nacieron como ella, sólo son en el mundo lo que es menester para sus Casas y obligación. Las reinas y emperatrizes caminan solas con sus cortes en muchas ocasiones; las sultanas, las más encerradas del Orbe, con esclavitud al dominio del Gran Señor, van con sus guardas y mugeres a donde es necesario, y del grado de Duquesa, la de Ossuna, Monterrey, Ligni y Carpio, han ido y venido consigo mismas donde las llamavan los acidentes de sus negocios, y la precisión dellos”.

A luta e perseverança foram tão grandes que levaram ao pedido de divórcio de Manuel Ponce de León. Esta era uma solução rara, mas possível no mundo Católico, embora com características muito diferentes das atuais. No entanto, nem o fim do casamento nem a posterior morte do marido permitiram a D. Maria Guadalupe regressar a Portugal. Cedeu os seus direitos a seu filho D. Gabriel Ponce de León Lencastre e Cárdenas, ficando este como 7º Duque de Aveiro.

Humanista

A informação sobre a 6ª Duquesa de Aveiro é dispersa, mas tem vindo a ser objeto de estudo. Daquilo que já se sabe sobre a sua vida sobressai a sua preocupação com os mais desfavorecidos e com a situação espiritual de seus vassalos. Para além disso, desenvolveu em si, cada vez mais, um catolicismo militante que a levou a interessar-se por missões de evangelização ao redor do mundo.

Exemplo desta ajuda aos mais pobres foi a emissão de um decreto, em 1701, em nome de seu filho Joaquim, que mandava distribuir, na época das colheitas, alimentos aos mais necessitados e isto antes de irem “para os ricos ou prósperos, para os pobres”. Para além disto ajudou a melhorar ou até construir muitas igrejas, tendo sido protetora e grande benfeitora do Mosteiro de Guadalupe (Cáceres), onde já estavam sepultados sua mãe e seu irmão. Consagrou-se em corpo e alma à Virgem de Guadalupe, acrescentando o “de Guadalupe” ao seu primeiro nome e tendo mandado gravar com um ferro quente no seu antebraço o nome: Maria de Guadalupe (certamente como prova de ser uma humilde servidora).

As missivas até agora descobertas, bem como os elogios fúnebres em sua honra, dão-nos uma mulher muito culta e decisiva para o envio de vários missionários para novos territórios. Decidia as missões, financiava, direcionava e queria saber os resultados do trabalho que iam desenvolvendo. Para além disso, denota-se a sua preocupação no tratamento que era dado às populações autóctones, bem como na defesa da dignidade dos escravos, fazendo lembrar a postura de Padre António Vieira. Numa sua carta, ela parece propor a um frade capuchinho, que estava em Curação, que cuidassem dos escravos africanos com que lidavam: “Habiendo considerado … la fatalidad de los gentiles del Africa a q[uienes] tantas naciones buscan por el cautiverio y ning[u]na p[ar]a llevarles la libertad de hijos de D[io]s, deseé sumamente ayudar estos pobres …”, lembrando ainda no fecho da carta que “…siendo obligación de los hijos de la iglesia romana cuidar de la doctrina de los esclavos…”.

Morte

Acabou por falecer às duas horas da tarde de um sábado, 9 de fevereiro de 1715, na sua casa da Calle del Arenal (esquina da atual callejón de San Ginés, no outro lado da Igreja de San Ginés) quando já contava com uns longos 85 anos. O seu corpo foi conduzido por uma larga comitiva ao Mosteiro de Guadalupe e foi sepultada entre as campas de sua mãe e seu irmão, por debaixo do arco principal da capela-mor e aos pés da imagem da Senhora de Guadalupe. A inscrição do seu tumulo, escrita por ela, diz: “Maria de Guadalupe, Lancastro, e Cardenas mandose enterrar en esto lugar debaxo de los pies de la Imagem centro de su amor, y esperança. In nidulo meo moriar, & sicut palma multiplicabo dies.”

Segundo Diogo Barbosa Machado (Bibliotheca Lusitana, Volume III, 1741-1759) abriram-se três caixas depois da sua morte e que: ”estavaõ collocadas debaixo da Imagem da Senhora de Guadalupe se vio em huma hum coraçaõ de prata com esta Quintilha composta por sua fervorosa piedade, e ardente devoçaõ.”

Jesus en la Cruz clavado

Moriendo por darme vida

Encended mi amor elado,

Que por mi sacrificado

Solo esto dexaes que pida.

Na segunda caixa estava hum papel, e nelle escrito estes solidos documentos dictados pelo espirito desta Heroina.”

Fide Deo, disfide tibi, fac propria, castas funde preces, paucis utere, magna fuge, multa audi, dic pauca, tace abdita, disce minori parcere, maiori cedere, ferre parem, sto tui victrix, Caelum pete, sperne caduca soli discere Deo vivere, disce mori. S.C. haec peccatorum scala est mea Maria, fiducia, & meorum haec tota ratio spei meae.

Na terceira caixa sobre dourada se achou outro papel, e nelle escrito com o proprio sangue da Senhora D. Maria de Guadalupe estas ardentes vozes a MARIA Santissima:

Amo, & amare volo Mariam Dominam meam tota anima, tota mente, totis viribus meis, toto corde, & ab hoc tam sancto, & pulcro amore non cessabo in aeternum. Amen. Sanctissima Virgo Mater Dei consecro, offero, dico, & dedico Sanctissimae voluntati, & servitio tuo me totam in holocaustum, in filiam, servam, & perpetuum mancipium, hoc est animan, & libertatem meam, potentias, sensus interiores, & exteriores: cor meum, corpus, vitam sanguinem meum, appetitum sensitivum, irascibilem, & concupiscibilem, passiones cum actibus suis. Dignare hoc servitutis meae Sacrificium in odorem suavitatis per amorem Filii tui, per misericordiam, botitatem, & benignitatem tuam per quasi infinitam maternitatem tuam. Amen, fiat, fiat, amen, amen. Quarta decima Maii 1684. Maria de Guadalupe